Publicado em: 15 maio 2015

Superbactérias podem matar até 10 milhões de pessoas a partir de 2050

Em 1945, o farmacologista escocês Alexander Fleming recebeu o Prêmio Nobel de Medicina pela descoberta da penicilina. Em seu discurso, ele próprio alertou que o uso inadequado da “novidade” iria torná-la ineficaz. Dois anos depois, surgiria o primeiro caso de resistência à penicilina — quatro anos após o remédio ser produzido em larga escala. Quase 70 anos mais tarde, as superbactérias, micro-organismos resistentes a todos ou à maior parte dos antibióticos disponíveis no mercado, são hoje uma das maiores preocupações dos cientistas, como previu Fleming. Estudos de diferentes centros acadêmicos trazem previsões catastróficas. Ontem, uma equipe liderada pelo renomado economista Jim O’Neill divulgou um relatório encomendado pelo governo britânico sobre o tema. Segundo o documento, a comunidade internacional deve se reunir em torno de um fundo de US$ 2 bilhões para, nos próximos cinco anos, estimular a indústria farmacêutica a desenvolver uma classe de antibióticos capaz de eliminar as superbactérias.

Os custos totais dessa política podem chegar a US$ 37 bilhões ao longo de dez anos. Um investimento importante se o mundo quiser evitar o pior. De acordo com o relatório, as superbactérias podem matar, a partir de 2050, 10 milhões de pessoas por ano, e as perdas econômicas seriam de US$ 100 trilhões, de 2014 a 2050. O impacto deve ser ainda mais devastador nos países em desenvolvimento e economias mais pobres.

— O que está claro é que, quanto maior a população, maiores as consequências. É como o argumento do Brics ao reverso. A China e a Índia podem perder nada menos que um milhão de pessoas por ano, e a Nigéria, 25% do seu Produto Interno Bruto (PIB) — disse ao GLOBO Jim O’Neill, que é ex-presidente do grupo financeiro Goldman Sachs e responsável por cunhar o termo Brics para definir o conjunto de países em desenvolvimento composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

PRESERVAÇÃO DA MEDICINA

O’Neill propõe que um aporte financeiro agora atrairia o interesse das empresas de medicamentos para pesquisas no setor. O mercado atualmente investe pouco no combate às superbactérias porque ainda não há interesse de farmacêuticas nesse tipo de droga. O dinheiro proposto seria enviado a centros de pesquisa e universidades de ponta, para criar novos remédios e formas de diagnosticar doenças.

— Nós precisamos relançar o desenvolvimento de drogas para nos certificarmos de que o mundo tem os medicamentos de que necessita, para tratar infecções e para permitir que a medicina moderna e a cirurgia continuem como conhecemos — afirmou O’Neill.

O termo superbactéria vem sendo cunhado nos últimos cinco a dez anos, de acordo com o infectologista Carlos Kiffer, pesquisador do Laboratório Especial de Microbiologia Clínica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A resistência das superbactérias, como explica o especialista, é resultado do uso indiscriminado de antibióticos, não apenas por humanos.

— Temos o uso de antibióticos na agricultura e na pecuária, portanto é uma conjunção de fatores. Claro, o abuso pela população é o principal fator — explicou Kiffer.

A dificuldade para um rápido diagnóstico microbiológico dos agentes causadores das infecções, por mais simples que sejam, pode acabar ocasionando a realização de um tratamento antibiótico empírico — isto é, sem a identificação da bactéria que provoca a doença, como explica a infectologista Marisa Gomes, do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). Assim, foi observado, nos últimos 20 anos, que o desenvolvimento de novos antibióticos não acompanhou a rapidez com que os micro-organismos desenvolveram a resistência.

— Já existem bactérias contra as quais não há recursos terapêuticos disponíveis — disse Marisa. — Qualquer pessoa pode ser atendida na emergência de um grande hospital, adquirir uma infecção com micro-organismo resistente e ter dificuldade de se recuperar, ou até morrer. Vale lembrar que as bactérias resistentes não estão restritas aos hospitais. Elas podem também ser adquiridas no ambiente, fora das unidades de saúde. Se não houver antibióticos para tratar as infecções, estaremos ameaçando a medicina como um todo.

Ainda segundo a estudiosa, apesar de serem organismos unicelulares, as bactérias “têm uma capacidade de organização e comunicação muito grande”. Ou seja, quando uma delas adquire um gene de resistência a um determinado antibiótico, transmite a característica para as gerações seguintes e também para bactérias próximas, inclusive de outros gêneros e espécies. Elas podem, então, tornar-se resistentes tanto pela mutação genética como pela aquisição de um gene de outro micro-organismo.

Em paralelo ao avanço das superbactérias houve, como aponta Kiffer, uma mudança de paradigma na indústria farmacêutica — um fator para além da dificuldade natural de achar novas moléculas retratada num documentário do site “Vice” sobre o assunto. Desde 1987 não há novas classes de antibióticos. Em janeiro deste ano, um estudo da revista “Nature” anunciou a descoberta um novo grupo deles, mas todos, por enquanto, em teste.

— Investir em tratamento de infecções é complexo. Requer muito dinheiro, e a comprovação de que um antibiótico funciona é um desafio científico. Houve maior direcionamento para patologias que talvez tenham maior retorno financeiro, como doenças crônicas, onco-hematológicas — esclarece Kiffer.

Apesar da clara negligência da indústria, há a consciência da necessidade de um enfrentamento mundial em diferentes países. Nos Estados Unidos, o FDA (agência reguladora de remédios do país) lançou a iniciativa “10 x 20”, que busca compromisso global para criar uma empresa de pesquisa e desenvolvimento de antibióticos poderosa o suficiente para produzir dez novas classes do remédio até 2020. Já no Brasil, segundo Kiffer, enquanto a academia e pequenas empresas estão envolvidas e buscando alternativas, existe uma esquizofrenia na adoção de medidas de fomento público, já que há “tantas outras coisas em que investir, e essa área, que é tão prioritária, acaba recebendo pouca atenção”.

Uma área promissora de pesquisa diz respeito aos chamados “quebradores de resistência”, compostos que funcionam para aumentar a eficácia dos antibióticos existentes — uma abordagem muito menos custosa do que tentar descobrir drogas inteiramente novas.

A Helperby Therapeutics, empresa fundada pelo professor Anthony Coates, da Universidade de Londres, criou um disjuntor de resistência que age contra a superbactéria MRSA. O composto, conhecido como HT61, em breve entrará em ensaios clínicos na Índia.

Marisa diz que também é importante aprimorar as medidas de prevenção, com maior controle no descarte dos antibióticos, para que não contaminem os rios, e buscar outras formas de terapia, como vacinas contra infecções. E alertar fortemente a população contra a automedicação: é preciso ir ao médico para saber se realmente é necessário tomar antibióticos. Quando há indicação, deve-se respeitar as horas e ir até o final do período recomendado de tratamento, sem interrupção.

Portal do Litoral PB

Com O Globo



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