Publicado em: 2 fev 2014

“Força e fé” por PR Sakauê

Patrícia Rocha consegue surpreender seu fãs num piscar de olhos, num franzir de rosto ou em qualquer expressão de felicidade todos os dias na TV Cabo Branco. Como sou fã de carteirinha e tudo, já faz tempo que descobri outro talento da senhora Sakauê que pouca gente, por enquanto, conhece. Patrícia escreve tanto que me emociona e comove a cada parágrafo.  Seu último texto “Força é Fé” não é para quem está interessado em leis ou sobre aquele bandido que planejou um crime quase perfeito. PR não falou sobre algum político nem voltou ao tempo de criança lá em Minas, é sobre  a vida que vem e que vai assim num zoom!

O texto abaixo é para imprimir, moldurar e pendurar na parede, aliás, farei isso ainda hoje

Reserve um tempinho para ler “Um Minuto e Meio”, o Blog da Patrícia Rocha!

Força é Fé

Foram vinte dias de passe livre no hospital. Eu cumprimentava a recepcionista e passava direto. Conhecia a enfermeira do pronto atendimento, a voluntária das quartas que servia pão e suco na fila de espera , o ascensorista. 

O desafio não era dos mais simples. Uma série de reportagens sobre o maior Hospital do Câncer do estado. Em todas, uma missão em comum: 

_ Eu não quero só o drama, quero uma mensagem de otimismo em cada uma delas. Terminar sempre pra cima! – orientou a editora-chefe. 

Parecia difícil. Um lugar onde o povo atravessa a rua pra não passar em frente a porta. Uma doença que ganhou apelidos, pra não terem que dizer o nome. Mas, em pouco tempo eu ia descobrir que as historias nascidas ali eram muito mais revestidas de orgulho, que dor. Mais superação, que perda. 

Logo no primeiro dia conheci Miriam. Um tipo que falava alto pelos corredores, com intimidade com os enfermeiros, abria e fechava portas com propriedade. Estranhei que mesmo depois de curada ainda fizesse do hospital parada frequente duas vezes por semana. 

Na mesma sessão de fisioterapia estava Dona Luiza. Uma senhorinha do alto sertão que há alguns meses tinha feito uma mudança forçada pra João Pessoa para se tratar. D. Maria José, que venceu um câncer há 17 anos, sem traumas, mas não sem sequelas. Desde então, vivia sem o seio esquerdo. 

_ Me perguntam se eu me sinto mutilada. Eu não! Eu sou completa. Não me falta nada. 

Na sessão de fono, mais um banho de sabedoria. Seu Francisco era traqueostomizado há muitos anos. Tinha tirado o esôfago, depois de um tumor.Ele desenvolveu um tique com a língua, que ficou inútil depois da cirurgia. Quando viu meu microfone, quase entrou em êxtase. Com gestos, chamou a minha atenção. Mastigava a língua e emitia um som gutural, na tentativa de se fazer entender. Nada que o fizesse desistir. Num pulo, sacou o pedaço de papel do bolso, e escreveu: 

_ “Fui locutor de rádio durante toda a minha vida. Meu sonho é narrar um gol do Brasil!”_ E quando o senhor ficar bom, vai gritar como, seu Francisco? 

A boca muda mexeu ao som imaginário de “il, il, il, il”, embaralhado no sorriso sonhador. 

Conheci também seu Jorge, que fez da luta contra o Câncer roteiro para o primeiro livro, lançado na terceira idade.

Conheci seu Jonas que quis a fonoaudióloga como madrinha do casamento.

Conheci dona Iolanda que toda terça e quinta colocava a saia mais bonita pra sessão de quimioterapia. Há anos. 

_ Tá bonita hoje, ein Dona Iolanda?

_ Já viu o sol lá fora, minha filha? Dia lindo! 

Até hoje desconfio que ela paquerava o senhorzinho da cadeira do lado. 

Enrolei o quanto pude pra conhecer a pediatria. Tinha a impressão de que nunca estaria preparada. As paredes coloridas, imagens de lápis de cor nos corredores, bolas de todos os tamanhos nas salas. A princípio, sugeria que era mesmo necessário desviar a atenção. 

Foram três dias mergulhada lá. Meu cinegrafista, pai há dois meses, me olhava com cara feia a cada vez que eu anunciava na porta: 

_ Bom dia! Bora continuar a série.

_ Eu tenho filho pequeno, Patrícia, não tenho estômago pra quilo. 

Não achava no direito de me omitir. Se alguém vivia aquelas histórias diariamente há anos, como poderia me esquivar por algumas semanas? 

Além do mais, as palavras da chefe ecoavam toda manhã. 

_ “Terminar sempre pra cima!” 

Um mantra. 

No primeiro dia, conheci Franciele. Era tão pequena que, dormindo, parecia que a cama estava vazia. A cabecinha raspada se misturava ao algodão do edredon. Desde o nascimento, há menos de dois anos, já tinha enfrentado duas grandes cirurgias. A mãe sofria mais. Ela, na inocência de quem nunca tinha conhecido a saúde, não se abalava. 

No segundo andar, aquela imagem angustiante de uma enfermaria lotada, típica de uma grande hospital público. Só que infantil. Crianças lotavam as macas, enquanto as mães faziam plantão nas cadeiras ao lado. 

Ali, fiz uma entrevista inusitada. Não pelo conteúdo. Não porque era um menino de 11 anos que lutava contra o câncer desde os dois. Não porque ele já passado por um transplante fracassado. Nem porque ele já não tinha um dos maiores prazeres da vida: comer porcaria até se fartar. Mas, sim, porque ele sorria. 

_ O que é que você sente?

_ O que eu sinto? Dor. Eu sinto dor. Aí mainha vai lá na enfermeira, ela traz morfina e a dor para num instante. 

Sorriso dele.

Susto meu. 

Não esperava que ele visse tudo tão simples. 

A mãe adotou o menino. E também a batalha contra o câncer. 

_ Eu não vou dizer que é fácil. É muito difícil. Mas, enquanto tiver uma chance, eu vou estar lutando. 

Nos dias seguintes, reencontrei Isaías e dona Cida muitas vezes. Numa delas, o trabalho era nas outras alas do hospital. Na saída, avistei a mãe na janela no andar de cima. Enquanto ela tentava dizer alguma coisa, ele apareceu na porta. Uma corrida meio desengonçada, com o braço cravado no soro. Tinha dificuldade pra caminhar, um curativo pesado no pescoço, boca meio seca. E o sorriso. Sempre. 

Me deu um beijo e saiu. Dona Cida chorava no andar de cima. 

Depois que a série foi ao ar, duas amigas se encantaram por Isaías. Compraram um presente pra entregar no dia do aniversário dele, 25 de dezembro. Por algum motivo, não pude ir junto. Se eu soubesse, teria sacrificado qualquer compromisso. 

Semanas depois, recebi várias chamadas do mesmo número, ainda de madrugada. Diante da insistência, atendi. O pai anunciava o fim da batalha. Isaías tinha sido vencido. A espera por um novo transplante tinha sido longa demais. 

Quando, enfim, fui conhecer a casa da família, em Bayeux, o clima era bem diferente do que vi nas fotos do dia da entrega do presente. Isaías estava sendo velado na sala de casa. 

Sorrindo.

 

** Texto dedicado à Diana e Glaucia, dona de um coração de ouro, que deram uma ultima alegria a Isaias.




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