Documentos revelam que doleiro abriu conta secreta da família de Aécio Neves em Liechtenstein
Na manhã do dia oito de fevereiro de 2007, um comboio da Polícia Federal atravessou sem alarde a avenida Rui Barbosa, no Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Estacionou próximo ao portão de abóboda dourada do edifício residencial Murça, no número 460. Desembarcaram dos carros agentes da Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros, a unidade da PF encarregada de investigar esquemas de lavagem de dinheiro. Bateram à porta de um dos confortáveis apartamentos do décimo-terceiro andar. Um casal de senhores atendeu, atônito. Não havia engano: era atrás deles que a PF estava.
O octogenário Norbert Muller e sua mulher, Christine Puschmann, eram suspeitos de comandar uma das mais secretas e rentáveis “centrais bancárias clandestinas” do país. Vendiam aos seus clientes um serviço que, por aqui, só eles podiam oferecer: a criação e manutenção, no mais absoluto sigilo, de contas bancárias no LGT Bank, sediado no principado de Liechtenstein, o mais fechado de todos os paraísos fiscais do mundo. Naquela manhã de fevereiro, tanto no apartamento do casal Muller quanto no escritório deles, os agentes e delegados da PF encontraram as provas de que precisavam.
Graças à organização minuciosa de Norbert Muller, havia pastas separadas para cada um dos clientes – apenas nos arquivos do apartamento, a PF localizou 75 nomes. Cada pasta apreendida continha extratos bancários de contas, procurações, cópias de passaporte do cliente, contratos, correspondências de Muller com o banco LGT, anotações de valores. ÉPOCA obteve cópia – na íntegra e com exclusividade – dos papéis apreendidos e da investigação da PF. Havia ali pastas com nomes de advogados, médicos, empresários, socialites, funcionários públicos, um ex-deputado e até um desembargador do Rio recém-aposentado. Havia ali, especialmente, uma pasta-arquivo amarela, identificada pela PF nos autos de busca e apreensão pelo número 41. Nela, o doleiro Muller escrevera, a lápis, a identificação “Bogart e Taylor”.
Era o nome escolhido por Inês Maria Neves Faria, mãe e sócia do senador Aécio Neves, do PSDB de Minas, então presidente da Câmara dos Deputados, para batizar a fundação que, a partir de maio de 2001, administraria o dinheiro da conta secreta 0027.277 no LGT.
Na terça-feira (15), tantos anos depois, veio a público a delação premiada do senador Delcídio do Amaral, do PT do Mato Grosso do Sul, que foi homologada pelo Supremo Tribunal Federal. Nela, entre muitas outras denúncias, Delcídio cita a conta em Liechtenstein. Aos procuradores, o senador disse que fora informado “pelo ex-deputado federal José Janene, morto em 2010, que Aécio era beneficiário de uma fundação sediada em um paraíso fiscal, da qual ele seria dono ou controlador de fato; que essa fundação seria sediada em Liechtenstein”. Delcídio diz que não sabe dizer ao certo, mas que “parece que a fundação estaria em nome da mãe ou do próprio Aécio Neves; que essa operação teria sido estruturada por um doleiro do Rio de Janeiro”.
Delcídio disse não saber se há relação entre essa fundação e as acusações que fez ao tucano – entre elas, de serbeneficiário de propinas em Furnas e de ter agido para interferir nas investigações da CPI dos Correios, da qual o petista foi presidente, em 2006. Janene era um dos líderes do esquema em Furnas, segundo as investigações.
Foi a primeira vez que uma testemunha da Lava Jato citou em público o que os investigadores da Procuradoria-Geral da República investigam sigilosa e discretamente. Os procuradores que trabalham ao lado de Rodrigo Janot apuram a participação de Aécio nos esquemas citados por delatores, em especial o de Furnas. Pediram colaboração internacional, junto às autoridades de paraísos fiscais, para averiguar se contas como a associada ao senador em Liechtenstein foram usadas para o recebimento de propinas. Já descobriram, informalmente, que vários políticos brasileiros foram pagos em contas secretas em paraísos fiscais europeus. Aguardam o compartilhamento oficial dessas evidências. Marcelo Miller, um dos procuradores que atuaram no caso do doleiro Norbert Muller, integra a força-tarefa da PGR.
Aécio acabara de assumir a Presidência da Câmara dos Deputados quando a conta em Liechtenstein foi aberta. De acordo com os documentos apreendidos pela PF, ela poderia ser movimentada por Inês Maria e por Andréa Neves, irmã de Aécio. Segundo os papéis, Aécio não estava autorizado a movimentar a conta da fundação no banco LGT. Era, no entanto, seu beneficiário, de acordo com um documento apreendido pela PF e conhecido como “By Law”. Trata-se de umdocumento sigiloso, cujas cópias estão disponíveis apenas para os signatários e seus advogados – e que nem sequer é registrado perante as autoridades de Liechtenstein.
O beneficiário, ou membro, de uma fundação tem direito a receber bens e dinheiro dela. Uma cláusula do By Law da fundação Bogart & Taylor especificava que, no caso da morte de Inês Maria Neves, Aécio herdaria a fundação e, com isso, o direito de movimentar livremente a conta no LGT. Ele, a mãe e a irmã são sócios em diversos outros empreendimentos, entre eles uma rádio e duas empresas de participação, de acordo com documentos da Junta Comercial de Minas Gerais.
A investigação da PF confirmou que nem Inês Maria, nem Andréa, nem Aécio declararam a existência da conta e da fundação Bogart & Taylor à Receita Federal ou ao Banco Central, como determina a lei. Nenhum dos outros clientes de Muller havia declarado também. Em tese, cometeram os crimes de evasão de divisas, ocultação de patrimônio e sonegação fiscal. Procurados por ÉPOCA, nem Aécio nem Inês Maria quiseram dar entrevista. Por meio de seus advogados, a família Neves confirmou que os documentos apreendidos são verdadeiros e que Inês Maria pretendia criar a fundação Bogart & Taylor em Liechtenstein para destinar recursos à educação de seus netos. Mas afirmam que a conta secreta no LGT foi aberta “sem conhecimento” da família. E permaneceu aberta por seis anos “à revelia” – até a operação da PF naquela manhã de fevereiro de 2007.
Numa das notas enviadas a ÉPOCA, os advogados da família Neves afirmam: “Em 2001, assessorada pelo seu marido, o banqueiro Gilberto Faria, a Sra. Ines Maria pensou em criar uma fundação no exterior para prover os estudos dos netos. Foram feitos contatos com o representante de uma instituição financeira, no Brasil, e a Sra. Ines Maria encaminhou ao representante as primeiras documentações. Em função da doença de seu marido (Gilberto Faria morreria em outubro de 2008), os procedimentos foram interrompidos, e a fundação não chegou a ser integralmente constituída. A Sra. Ines Maria nunca assinou qualquer documento autorizando a abertura de conta bancária e nunca realizou remessa financeira para a mesma”.
Após a revelação do depoimento de Delcídio, a assessoria de Aécio divulgou nota reafirmando, em essência, o que seus advogados haviam informado a ÉPOCA. Omitiram, porém, que a conta só foi declarada após a batida da PF na casa do doleiro. Acrescentaram que o MPF no Rio e, ano passado, a própria PGR arquivaram investigações sobre o caso. É verdade. Omitiram, no entanto, que não houve investigação em nenhuma das duas instâncias.
Numa, os procuradores disseram ser inviável apurar a existência da conta, em razão da proteção assegurada por Liechtenstein; noutra, a mais recente, a PGR limitou-se a seguir burocraticamente o que os procuradores no Rio já haviam dito. Ao arquivar o pedido de investigação, a PGR, no entanto, ressaltou que ele poderia ser reaberto mediante o surgimento de mais provas – como a delação de Delcídio e o avanço na colaboração da Lava Jato com autoridades de paraísos fiscais.
O segundo beneficiário
Indepedentemente do desenrolar da investigação na Lava Jato, um exame atento dos documentos da pasta amarela permite levantar sérias dúvidas sobre as declarações apresentadas por Aécio e seus advogados.Os papéis contradizem a versão de que a conta foi aberta “sem conhecimento da família” de Aécio e que permaneceu aberta “à revelia” dela. A pasta amarela guardava toda a papelada usada para abrir a conta. Havia cópia do passaporte de Inês Maria, assinaturas dela nos contratos com o LGT e procurações a Muller. Havia também páginas de extrato da conta. Em 2007, havia US$ 32 mil de saldo. Como são poucos os extratos apreendidos, não há como saber quanto dinheiro foi movimentado – nem quem fez depósitos ou saques. Na pasta, havia ainda numerosos faxes trocados entre Muller e um grupo de advogados ligados ao LGT, sediados em Vaduz, capital de Liechtenstein, com quem Muller mantinha parceria para facilitar contatos com o banco. Havia, por fim, os documentos de criação da fundação Bogart & Taylor, titular da conta no LGT. A criação da fundação, um tipo de entidade jurídica destinada a administrar patrimônios, estabelece uma camada extra de anonimato ao cliente. Uma coisa (a conta) não existe sem a outra (a fundação). Trata-se de uma precaução comum em Liechtenstein, também seguida por outros clientes de Muller.
Os documentos revelam que as tratativas para abrir a conta secreta começam em abril de 2001. Não se sabe quem da família de Aécio procura Muller – nem por quê. Naquele momento, apesar das declarações dos advogados de Aécio, Muller já é um personagem conhecido no mundo dos negócios clandestinos cariocas. Não é um “representante de uma instituição financeira”. É um doleiro, conhecido também da PF, que o havia processado por crimes contra o sistema financeiro e fraude cambial em casos dos anos 1990. No dia 26 de abril, surge o primeiro registro formal da abertura da conta (todos os documentos em alemão obtidos por ÉPOCA foram vertidos ao português por um tradutor juramentado). Muller envia um detalhado fax aos advogados de Liechtenstein que, em parceria com ele, cuidavam das contas secretas da clientela brasileira. O assunto: “Nova fundação Bogart and Taylor”. Em anexo ao fax, seguem os documentos de abertura da Bogart & Taylor e, também, da conta bancária dessa fundação. “Hoje eu recebi da proprietária US$ 21.834,00 a título de capital e peço que me informe por fax o endereço para o qual deve ser transferido o dinheiro”, escreve Muller. Ele é claro quanto à administração do dinheiro: “A fundação deve abrir uma conta no Banco LGT Bank em Liechtenstein AG, e ambas as pessoas inscritas no cartão de assinaturas deverão poder assinar”. Assinar, nesse caso, significa o poder de movimentar a conta. As pessoas autorizadas são Inês Maria e Andréa.
Três dias depois, em 29 de abril, Muller envia mais documentos da família Neves a Liechtenstein. Conta detalhes das tratativas com Inês Maria: “Gostaria de informar que a proprietária quer substituir ‘and’ por ‘&’. Por favor, faça esta alteração. Em anexo, encaminho o estatuto que acertei com ela na data de hoje. Peço a gentileza de informar se esta minuta pode ser aceita. Na quarta feira visitarei a proprietária novamente, para colher a assinatura”. No dia seguinte, a advogada Daniela Wieser, uma das parceiras de Muller em Liechtenstein, confirma o recebimento dos papéis: “A fundação está sendo criada na data de hoje, e espero todos os documentos de volta até a metade da semana que vem. Por favor, envie ainda o endereço e a data de nascimento da cliente (eventualmente por fax), e uma cópia autenticada do passaporte”. Daniela Wieser informa a conta (0400130AH) no LGT que deverá receber os recursos para a criação da Bogart & Taylor. Essa conta pertencia à Hornbeam Corporation, era administrada pelo grupo de Muller – e, noutras investigações da PF, já aparecera metida em transações ilegais com doleiros brasileiros. Não há comprovantes da origem dos dólares repassados pela família de Aécio ao doleiro Muller. Mas é certo que eles chegaram à conta secreta no LGT por meio de uma conta usada para lavar dinheiro.
Em 7 de maio de 2001, prossegue a troca de documentação entre Muller e seus contatos em Liechtenstein. A advogada Daniela pede, por fax, mais informações sobre Inês Maria: “Por favor, me informe por fax a profissão da cliente e de seu ex-marido, pois necessito destas informações para a Hornbeam (a empresa de Muller, cuja conta abasteceria a conta da família Neves em Liechtenstein)”. Muller responde no mesmo dia: “A cliente (Inês Maria) administra seu próprio patrimônio. O ex-marido (Gilberto Faria) é um industrialista com diversas empresas, além de acionista de um grande banco (Bandeirante)”. No mesmo dia, Muller envia os documentos necessários para a criação da Bogart & Taylor: cópia autenticada do passaporte de Inês Maria, procuração assinada por ela e os estatutos da fundação.
O estatuto, assinado por Inês Maria, prevê que ela teria a liberdade de distribuir o dinheiro em nome da Bogart & Taylor como quisesse. Segundo o estatuto, cria-se a Bogart & Taylor com um patrimônio inicial de 30 mil francos suíços. Noutro documento, uma espécie de procuração, Inês Maria delega a Muller, por meio de uma das companhias dele, a Domar Fiduciary Management, com sede em Liechtenstein, o poder de administrar a Bogart & Taylor e o dinheiro dela. No mesmo documento, assinado pela mãe de Aécio, especifica-se que a Bogart & Taylor abrirá conta no LGT, que os recursos dessa conta serão geridos em dólares americanos – e que a conta poderá ser movimentada por Inês Maria e Andréa. Ou seja, nada indica que tenha sido uma operação “sem conhecimento da família”. Muller aparece como contato da Bogart & Taylor, com a seguinte ressalva: “(Contactar) Apenas em casos de extrema necessidade”. Semanas depois, Muller viaja a Liechtenstein. Encontra-se em Vaduz com os advogados que cuidam das contas no LGT. Recolhe as assinaturas deles, os recibos do LGT e, logo depois, traz a papelada ao Brasil. Guarda-as na pasta amarela.
LGT, um banco de lavagem
Quatro anos após a abertura da conta, os advogados ligados a Muller pedem que Inês Maria assine mais papéis. Agora, a família Neves demonstra cuidado. Em 16 de março de 2005, Muller explica aos advogados, por fax, por que Inês Maria não quer assinar os documentos restantes: “A proprietária (Inês Maria), por ocasião de minha visita no dia de ontem, declarou que ela não quer assinar nenhum documento no Brasil. (…) Se a assinatura das declarações que me foram enviadas tiver que ser de imediato, ela prefere fechar a fundação (…) Em poucos meses, ela (Inês Maria) estará em Paris e me prometeu informar a data da viagem e o local de permanência em Paris, para que o senhor possa enviá-la os documentos para assinatura”.
Meses depois, em 17 de novembro do mesmo ano, nada mudara. Por fax, Muller reforça aos advogados que Inês Maria prometera resolver as pendências somente quando estivesse fora do Brasil. “Infelizmente, a senhora (Inês Maria) ainda não assinou o formulário ‘declaração’. Ela sempre diz que pretende resolver essa pendência tão logo esteja em Paris. Mas seu esposo está atualmente doente e se encontra em cadeira de rodas, de forma que ela não pode viajar”, escreve Muller. Diante da demora de Inês Maria em assinar os papéis, ele parece resignado: “Continuarei tentando colher a assinatura dela, mas não tenho muitas esperanças”.
No dia em que a PF apreendeu os papéis na casa de Muller, a conta de Inês Maria no LGT registrava saldo de US$ 32.316,12. Dois meses após a operação da PF, Inês Maria finalmente “cancelou os procedimentos de criação da fundação”, nas palavras de seus advogados. De onde saiu o dinheiro depositado por Muller na conta de Liechtenstein? Os advogados dizem que Inês Maria pagou, embora não identifiquem a origem dos recursos nem forneçam comprovantes: “Ao longo de seis anos, o Sr. Norbert cobrou duas vezes, em 2001 e em 2005, da Sra. Ines Maria, honorários e taxas para a criação da fundação. O valor total dos dois pagamentos, feitos em moeda nacional, no Brasil, correspondeu, na época, a cerca de US$ 30 mil, uma média anual de US$ 5 mil. Em 2007, após protelar por anos a assinatura dos documentos faltantes, tomou a iniciativa de encerrá-lo para evitar que se mantivesse indefinidamente em aberto”.
Abrir uma conta em Liechtenstein e declará-la ao governo seria tão inusitado que não há registro público disso. O BC não pôde informar a ÈPOCA o total de recursos enviados por brasileiros a Liechtenstein – uma informação que costuma ser pública. O montante, diz o BC, é tão pequeno que revelá-lo ameaçaria o sigilo bancário dos poucos remetentes. O LGT, que pertence à família real de Liechtenstein, é conhecido, no sistema financeiro internacional, como um porto tranquilo para dinheiro de origem duvidosa. Em fevereiro de 2009, dois anos após a operação da PF, Heinrich Kieber, um funcionário do LGT, fez cópia completa dos documentos de 1.400 contas hospedadas no banco. Vendeu-as aos serviços secretos da Alemanha e da Inglaterra – dois dos países com maior número de correntistas, que maior prejuízo haviam tido com a sonegação de impostos. Seguiram-se extensas investigações e a maior operação de combate à evasão fiscal nos dois países. Os dados foram compartilhados com outros países prejudicados, como França, Espanha, Itália, Grécia, Suécia, Áustria, Austrália, Nova Zelândia, Índia, Canadá e Estados Unidos. Houve investigações em todos e prisões na maioria. Até a Lava Jato, o Brasil não pedira acesso aos dados.
Num depoimento ao Senado americano, ainda em 2009, Kieber deu detalhes de como clientes são orientados pelo LGT a proceder, de maneira a enganar as autoridades. “O LGT orientava seus clientes a não contar a ninguém sobre a existência dessas entidades (fundações), incluindo advogados ou familiares que não fossem beneficiários do patrimônio mantido no bancos suíços”, afirmou Kieber. “As relações humanas podem não terminar bem, e o cliente se transformar em vítima de alguma chantagem.” Outra orientação, nas palavras de Kieber: “Não ligue para o LGT de casa, não ligue de casa nem do trabalho. Use apenas telefones públicos”. De acordo com o Kieber, o LGT só usava telefones celulares da Suíça e da Áustria, para dificultar o rastreamento das autoridades. Ele informou também que o LGT não se comunica com seus clientes por e-mail. “O fato de os clientes do LGT não precisarem do dinheiro escondido para despesas rotineiras ajuda a não ser detectado.”
A central bancária paralela
De posse do material recolhido e analisado pela PF, e ciente também das revelações do ex-funcionário do LGT, o Ministério Público Federal decidiu não aprofundar as investigações. Em 20 de abril de 2009, os procuradores Fábio Magrinelli e Marcelo Miller ofereceram denúncia apenas contra os três integrantes da família do patriarca Muller, que morrera recentemente: a viúva dele, Christine Puschmann (segundo os procuradores, ela assumira os negócios do marido) e duas de suas filhas, Christine Muller e Ingrid Muller. “A denunciada Christine Puschmann, agindo em conjunto com seu companheiro Norbert Muller, fez operar uma verdadeira instituição financeira informal, mas suficientemente estruturada, gerindo recursos de terceiros em larga escala. As atividades eram desenvolvidas com a captação, intermediação e aplicação de divisas pertencentes a seus clientes, pessoas físicas majoritariamente residentes no Brasil, em especial a partir da administração de contas mantidas no exterior, mais precisamente no LGT Bank, sediado em Liechtenstein, e no UBS Bank, sediado na Suíça, em notórios paraísos fiscais”, escreveram os procuradores. Eles afirmam que a família Muller atuava como uma espécie de “central bancária paralela”. Abriam e movimentavam contas em paraísos fiscais, sacavam dinheiro, depositavam dinheiro – e até distribuíam cartões de crédito, de modo a facilitar os gastos cotidianos dos clientes.
Segundo a denúncia, o material apreendido pela PF na casa de Muller, aliado aos diálogos telefônicos interceptados no decorrer da investigação, revela a existência de “mais de uma centena de contas vinculadas ao LGT Bank e ao UBS Bank que eram administradas pelo casal”. “Tem-se que a identificação das contas e de seus titulares a partir dos elementos carreados aos autos, todos harmônicos e complementares entre si, evidencia a dimensão do esquema ilícito posto em prática por Norbert Muller e Christine Puschmann, revelando a perenidade da sistemática, o longo lapso temporal em que executada, a expressividade dos valores envolvidos (…), tudo realizado à margem da fiscalização das autoridades brasileiras, sempre com o cuidado de se manter a clandestinidade dos negócios”, afirmam os procuradores.
E quanto aos clientes? Os procuradores acharam melhor transformar o caso de cada um num processo separado. A depender da cidade de residência do investigado, encaminharam fragmentos de provas a diferentes procuradores, que tiveram autonomia para decidir que providências tomar. Essa estratégia produziu resultados incoerentes com a denúncia do MP contra Christine Puschmann. Em Porto Alegre, os procuradores resolveram pedir a Liechtenstein acesso às contas dos investigados. No Rio de Janeiro, onde mora a maioria dos clientes, diferentes procuradores ofereceram diferentes entendimentos sobre como proceder, apesar de analisar iguais evidências. Houve casos de denúncia. E houve casos de pedido de arquivamento. Foi o que aconteceu com a família Neves.
Em 23 de fevereiro de 2010, o procurador Rodrigo Poerson – dez meses após seus colegas de andar na Procuradoria da República do Rio acusarem Muller de operar uma “central bancária paralela” – assinou despacho em que pede o fim das investigações sobre a conta da fundação Bogart & Taylor. (O MPF se recusou a fornecer cópia do parecer; ÉPOCA teve que obter o documento na Justiça.) Nele, em três páginas, Poerson acolheu integralmente os argumentos da defesa de Inês Maria. E disse ser inviável conseguir a colaboração de Liechtenstein. Ele desconsiderou os documentos assinados por Inês Maria, que previam a abertura da conta, e a própria natureza das fundações em Liechtenstein – para criar uma fundação, é necessário depositar 30 mil francos suíços numa conta aberta em nome dela. Diante do parecer de Poerson, em 26 de fevereiro de 2010 o juiz federal Rodolfo Hartmann, do Rio de Janeiro, não teve opção senão arquivar o processo. Ele fez a ressalva de que, se o Ministério Público tentasse conseguir mais provas, reabriria a pasta amarela.
Com Época
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